On the life


I
“Acordei com o Sol rubro do fim de tarde; e aquele foi um momento marcante em minha vida, o mais bizarro de todos, quando não soube quem eu era – estava longe de casa, assombrado e fatigado pela viagem, num quarto de hotel barato que nunca vira antes, ouvindo o silvo das locomotivas  e o ranger das velhas madeiras do hotel, e passos ressoando no andar de cima, e todos aqueles sons melancólicos, e olhei para o teto rachado e por quinze estranhos segundos não soube realmente quem eu era. Não fiquei apavorado; eu simplesmente era uma outra pessoa, um estranho, e toda minha existência era uma vida mal-assombrada, a vida de uma fantasma.” Jack Kerouac, On the road
II
Ao lado do grande e espalhafatoso, soberbo, global, teatro rosa, em um beco escuro e vazio, contornado pelo fedor das entranhas dos grandes centros, eu aportei brevemente. A noite sempre conduz por caminhos tortuosos.
- Do que está fugindo? – vieram as sibilantes palavras a ecoar pelas paredes com tijolos à mostra; uma voz com a força da recordação de um trovão extinto.
- Não estou fugindo, estou buscando.
- Bem idealista, mas vejo um jovem cambaleando por ruelas abandonadas; um foragido é algo bem diferente de um desbravador do desconhecido.
Alfaiate do absurdo! – fitei-o com a calma de quem se entrega a um devaneio. O álcool turvava meus sentidos, tal fora a explicação construída pela minha mente semi desperta para a aura divina exalada por aquele velho recostado no beco.
-  Há quanto tempo tem vagado perdido?
- Sereia aposentada! Dignitário de tempos idos; dirias a Cabral que ele se perdeu das Índias? Teu canto é doce como o mofo de águas paradas; dissemina o odor de um cancioneiro celebrado por traças na biblioteca esquecida do velho convento Anchieta. – Evidentemente eu não compreendia metade das palavras que dizia, estava bêbado e tinha o péssimo hábito de injetar Literatura em minhas falas.
            Instantes de calmaria e vorazes olhares fervorosos antecederam uma grande seqüência de risos. Duas almas enfadonhas perdidas no mundo. Dentre os trajes miseráveis, trajavam o insólito.
            - “Tudo o que tenho para oferecer é confusão”. – ecoou alto nas construções coloniais.
Desengonçados anjos saltitando pelo frenesi do viver. Naftalina de dias vindouros, ainda em gestação no ventre da imaginação. Ririam e riram, enquanto durou a imagem, era o tudo que lhes cabia deste quinhão.
            III
Todas as estradas são conhecidas, existem pois alguém as trilhou. Cada passo no desconhecido é feito sobre pegadas dissolvidas pelo tempo, resquícios de fantasmas que jazem no horizonte longínquo; sempre buscado, nunca alcançado. Meus pés fatigados comprazem-se ao sentir o afago do solo, perdidos no caminhar incessante apenas prosseguem; há força aqui, afinal, aqui pisaram homens. Desvairados, sedentos e tolos, assim como sonhamos ser, todos nós, que travamos o desafio de viver.