Manhã qualquer.

Salve traça!
Atualizando em dose dupla hoje!
Segue um conto que larguei no limbo de minha gaveta por três anos, na esperança que poeria virasse ouro, pois é, não rolou. Pobre destino para este conto, veio para estante, servir de alimento para traça...

                             ATENÇÃO

Passem os olhos em "Bye Bye Moebius" primeiro, pois este conto conversa diretamente com os quadros de Moebius.




Manhã qualquer



Em uma manhã prematura, feito aborto atrasado, do alto do galho do juazeiro, uma coisa fitava o velho e suas ações, era ELE. Cada gesto matinal da senil criatura era uma nova faceta do enigma que se postava aos olhos daquELE peculiar observador. Com esta manhã, já se somavam três, nas quais os olhos e a mente dELE se viam atadas às ações daquele ancião. O velho, cujo respeito emanava da presença, trazia muitos anos no rosto e um olhar calado pela solidão.
O dia, espreguiçando-se, mal surgia e o velho já estava de pé. Copo de água na mão e chapéu para abraçar a careca, tendo por assento o chão, o velho aguardava na varanda do casebre onde mora, enquanto o sol não se levantasse acima do horizonte tão pouco ele o faria. Sua cabeça dançava, céu chão, céu chão, em um bailado que um observador menos atento poderia interpretar como cochilos, no entanto, ELE sabia que aqueles olhos secos pelo tempo do ancião acariciavam o cemitério, tal qual os da morte encaram um campo de batalha em flor.
O cemitério, cujo olhar do velho monopolizava, encontrava-se logo à frente do casebre. Enorme, ELE já o vira do alto, ao passar voando três dias atrás. Estendia-se por quilômetros, túmulo após túmulo, mármore, ardósia, concreto, azulejo, madeira, terra e ossos. Se fossem compilados os epitáfios daquela multidão de lápides, volumes nada modestos preencheriam qualquer biblioteca. Algo notavelmente, vivo, enquanto criação, e morto enquanto moldura.
A bizarra cena se abria novamente aos olhos dELE.
Pesado, o Sol brilhava, imenso, sobre aquela figura de idade avançada. O ancião se levantou, tomou uma vassoura nas mãos e caminhou pela breve estrada que ligava sua casa até o cemitério, um portão demarcava os limites entre aqueles dois terrenos. Assim como nas manhãs passadas, do bolso uma chave foi retirada e assim, aberto o portão; o limite entre o cemitério e a estrada ficava mais tênue. Começava, uma vez mais, o ritual que demandaria toda a manhã, vassourada a vassourada, a estrada era limpa.
Tempos em tempos, seja a idade ou a memória, cobrava do velho uma pausa, gasta, enigmaticamente, em longa contemplação do cemitério. Cabeça recostada no cabo da vassoura, o ancião percorria com os olhos aquela necrópole que tomava o horizonte. ELE, ressaltado com aqueles atos, mordia a língua, ansiando por respostas. Basta!, disse antes de voar rumo a figura senil.
- Diga-me bom senhor, o que contemplas? A quais paisagens da memória este fúnebre horizonte lhe transporta? – Disse ELE.
- Não olho, apenas varro.
- Há verdade em suas palavras, mas ainda há algo além. Observo-o por três dias repetindo os mesmos atos, conheço seus hábitos, somente não os compreendo, diga-me e cale minhas dúvidas, o que se esconde sob este varrer?
- Sei quem você é, por que vem perturbar um velho ocupado demais com seus próprios demônios? Fará de mim a piada do dia?
- Talvez eu saiba muito, talvez não saiba nada, talvez eu seja a dúvida, a própria questão que lhe aflige. Diga-me, dói manter o silêncio aí dentro? O quanto tem se martirizado para manter a voz interior calada? Deixe que eu seja o mar para este rio que há tanto se encontra represado. Sei que suas ações escondem algo.
- Não tenho como escapar de ti, vil. Não pense que de joelhos sussurrarei em prantos minha vergonha.
- Esbraveje então, que seja! Toma-me pela pessoa errada, mas isso não cala minha dúvida. Não hesite, fale!
- Este cemitério é a obra de minha vida, lá sepultei os outros “eu”, existências enterradas durante minha existência. Sonhos matutinos, idealismos juvenis, amores de noites de verão, outros de verões inteiros, enfim, naquele solo sagrado jazem esqueletos de coisas de tempos idos, vestígios do que passou, tão apenas.
- Sim! Belo! É deveras um criador, mas acalente uma última dúvida, por que varrer a estrada?
- Mantenho o caminho limpo, pois sempre há um novo eu a se sepultar, uma nova lápide a se construir. – Respondeu o velho, com uma voz contida, quase interna.
- Velho ancião, tenho respeito por sua pessoa, mas por mais que tente mentir para mim, nunca será capaz de mentir para si próprio. Vejo na secura de teus olhos que somente a chuva os tem umedecido. Faz-te falta o que nunca teve, não? Enterra o passado, sim, mas nunca a saudade. Você sabe o porquê de abrir, todas as manhãs o portão, a razão atrás de cada movimento da vassoura; nós sabemos.
- Cada uma daquelas lápides é um diamante para mim, preciosas em memórias, sim, mas são tributos ao passado, são coisas mortas.
- Não está sendo sincero, os que fazem do cultivo de sonhos a substância da vida sabem a fragilidade dos diamantes. Você cultiva sonhos, o maior deles, o grande retorno, talvez por culpa, pois sabe que é assassino e coveiro de todos os que se foram, e agora, em fé, aguarda que o passado retorne infante, pulando e sorrindo, por esta estrada que com tanto esmero limpa.
- O coro do passado nunca se cala, tem razão, ele é o enigma do presente. O tempo dissolveu a diferença entre assassino e coveiro, chamo-me; sobrevivente.
- Pois eu o chamo; crente! Não somos tão diferentes ancião, no entanto, enquanto você reza pela vida, eu vivo. Meu cemitério? O mundo. O seu; si próprio.
- Tolo, não encontrará em mim terra fértil, pois seu discurso é estéril.
- Já chega velho tolo! Anuncia-se o momento da partida, cheguei com a dúvida e agora a deixo com você. – Tais foram as palavras dELE enquanto, lançava asas ao ar. Ainda nas proximidades, virou-se e com um sorriso burocrático afirmou.- Lembre-se, eu semeio a vida, e ela brota em qualquer cemitério.




Era mais uma manhã prematura, feito aborto atrasado, e em tons de devaneio, um jovem ancião se levantava. Nunca se soube para quê...
Assim têm sido. 




Créditos da imagem: Quadro de Lourenço Mutarelli presente em "Quando meu pai se encontrou com o et fazia um dia quente."

Bye Bye Moebius

Salve traça!
Milênios se passaram desde a última postagem (pouco mais de um mês) e aqui estamos de volta. Mas por quê? Oras, a estante mudou de lugar, de Taubaté foi para Belo Horizonte. Tentarei restabelecer a frequência de um post por semana, veremos...
Pois então, Jean Giraud, ou Moebius, francês setuagenário, morreu. Nada mais normal, é algo a que todos que estão vivos estão sujeitos, particularmente, sentirei falta...
Não vou ficar descrevendo qualidades, segue um apanhado que fiz: alguns quadros pertencentes a história entitulada "O pau doido".


























Caso queira saber mais sobre Moebius, tem este post aqui, do Pipoca e Nanquim e também também o site oficial do autor.
Também ilustrei "Camada externa do ser; pele", com uns quadros de Moebius


 Crédito das imagens: Coleção Moebius, Absoluten Caulfeutrail e Outras histórias.