O diálogo do eu.




Tem como brincar de Adão e Eva sem ter nas costas o peso do mundo? Sim, estou arrependido, mas isso é papo para os meses adiante. Agora a noite chega ao fim.

Ilusões caminham para casa, voltam da festa. Caminho ao lado, altivo. Não sou do tipo sonhador, costumo me apoiar na dor do solo, não nas canções de horizontes ensolarados. Chamam-me insensível. A verdade é o inverso. Com sono, flerto com o chão de asfalto, é quando o vejo.

Nas raízes da árvore ele dorme confortável. Usa um cobertor como barraca. Não vejo o homem, mas o corpo está ali, respirando. Veja: a árvore, o homem e a manhã em trapos. - quadro pintado às pressas por um olhar sonolento.

Não me pergunte, mas sei que há mais vida ali, naquela cabeça sobre o travesseiro de raiz, do que no ônibus lotado, silencioso em sons humanos, que vem pela avenida. Buzina para mim, quase me atropela. Eu pedi para que meu corpo parasse, mas ele seguiu. Não tome o ruído por ruína, não ainda.  Ainda estou vivo, apesar. Uma frenagem inesperada, um susto e nada mais. Quase acordei as pessoas enlatadas ali dentro. Chega, tenho de ir. Embrulho minhas reflexões em passos certeiros e sigo.

Cabeça baixa por cabeça baixa ele dormia, eu não. Seria homem, ou mulher? Estranhamente fiz daquilo um homem, mas isso diz de mim, não do corpo sob o lençol. Continuar o caminho é o caminho, para lugar algum, mas com um sorriso amanhecendo. Sim, eu quis; quero, ajudá-lo, mas de leve, com um tanto de preguiça, confesso. Mas quem sou eu para tirá-lo do sonho? Só o que posso lhe dar é inveja. Com vergonha.

Atrasado revejo algumas cenas há muito ensaiadas: eu dançando, indo, sorrindo, mas hoje não mais. É segunda-feira, grita o calendário. Dia útil, tempo de ignorar corpos pelas ruas. Tenho de ir para casa me lavar. Bora-bora que o despertador está cumprindo seu trabalho, mas eu ainda estou carente de utilidade.

O final da semana, passada: destroço de castelo. Quiça construa outro no paraíso da semana seguinte, outra princesa com roupas largas, outra fantasia de príncipe remendada. Mas isso é outro conto e mesmo que haja muita felicidade que não me caiba, no baile resta bailar, por isso, desconecto a tristeza para construir a esperança de sexta próxima. Mesmo que minha gata borralheira calce sapatos de cacos de garrafas, novamente.

Chove chuva, chove sem parar. Canto e rio, dentro de minha discrição etílica, é claro. Ele terá frio? Eu tenho, e apresso o passo; isso se chama maturidade. Ocupar seu lugar com responsabilidade. Afinal, o avião está partindo, o ônibus já se fora... Aproveite a viagem, sorri a placa. Para onde vou? Para onde o corpo dormente vai? Esqueça o homem, deus!

Chega de diálogos. Agradeço ao corpo que dorme, deu um rabo para meus pensamentos correrem atrás. Ele está lá, eu vivo aqui, em minhas próprias avenidas. Não posso me culpar por lhe faltar caixão, por não haver quem lhe carregue em marcha. Feito buquê, ninguém jogará lágrimas sobre o solo no seu fim, mas e daí? As árvores continuarão a crescer e outros farão delas travesseiros, questão de conforto. A mim, instiga este futuro tão bem escrito no presente. Orgulho é saber ler, em minha ignorância, tocar essas vozes que não ouço.

Viro a rua, mas quem se vira sou eu. Caminhar, sempre à frente, é alucinógeno. Na sexta tem mais! Tenho de rir, estou atrasado, mesmo que vovô tenha morrido semana passada, e todos ainda falem dele, tenho que guardar o silêncio para o casamento de meu irmão.

Sem senso de tempo me perco na rua reta. Eis porta a porta de casa, ufa. Tenho chaves nos dedos, porém a fechadura dança. Minha religião não se lembra como agir. Olho para trás, somente a árvore é visível. Deito-me. A porta de metal não conforta minha cabeça, não a descansa. Penso naqueles para quem finjo sorrir, o que pensarão de mim ao ver-me aqui? Largado, em frente à própria a casa, trêbado, incapaz de abrir seu próprio lar. Parabéns! Não quero, mas durmo.

Relâmpagos, a chuva é pesada. Acordo em minha casa, deitado em minha cama. Alguém me ajudou, desconheço quem. O relógio marca três da tarde. Perdi o horário, talvez o emprego.  Pela janela de meu quarto vejo os galhos da árvore, distante, sacudidos pelo vento. Falta-me a lembrança de algo, tenho certeza. Meus olhos doem. Tento dormir.










Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Desgraçados, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

A roda e a fortuna.

Salve traça, mais um conto!
Este mês cumpri a meta de quatro publicações. Não que exista uma ligação entre qualidade e quantidade, mas acredito que a prática é muito necessária, logo, estabelecer uma meta é uma das maneiras de me forçar a fazer algo. Infelizmente ter prazos e pressão é uma necessidade que já internalizei. Enfim...


Roda e fortuna

Para Luci  Rosa,  motivadora profissional.



Na agenda do pesadelo há vida na dor, a despeito da dor. Mesmo o prazer, a felicidade e todo o resto, quando apregoados na cruz cotidiana, fazem o amanhecer de um escuro noturno. Difícil? Não, nada mais que viver; e isto não é o mais simples de tudo?

O dever de deslizar pela existência, sem alarde,  sem excessos.

Ela escorrega, vento no rosto, desliza leve pelo escorregador. O vento a sopra, calmo feito avô. Seus pesinhos fincam na areia pisada, batida, dura. Levanta-se rápida, corre e sobe novamente. Do alto, não contempla, se lança com a certeza da carícia do vento. Sorrir é desnecessário. Feliz? Talvez. Inconsciente? Sim. Tais memórias: o chão de areia do parquinho, o odor úmido de manhã recém nascida, o ranger do velho escorregador, cada imagem do passado cobra seu dízimo; depressão.

Ela perdeu os movimentos aos 15, eu a olhava desde os 12. Semana passada fez 16; não houve festa. Sou amigo da família. Aquele vizinho de caráter inquestionável, que trabalha a valer, orgulhoso de suar mais que os outros. Bom desenhista que sou, desenhara minha imagem de cidadão exemplar. Hoje colho os frutos de meu traço simples, de minhas cores ternas, de minha forma cartunesca. Sou bom, confiável e inofensivo, mesmo que treine meu sorriso no espelho.

Já há um mês tenho cuidado da jovem Maria, não gosto de chamá-la Mariazinha. Embora a menina sofra de algumas deformidades, fruto do acidente, ainda conserva a essência da beleza que desfilava brincando no parquinho em frente de casa. Sabe como é, tenho muito tempo livre,  trabalho no turno noturno. Sem pensar duas vezes me ofereci para passar as tardes com a garota, para ajudar a família, ainda abalada. Ajudar ao próximo, não ser egoísta, estas coisas todas. Venho trabalhando em virtudes ultimamente. Eles ainda sofrem com o destino imposto à Maria, mas precisam trabalhar, quase todos precisamos. Deus sabe o que faz, assim lhes digo, e não tenho dificuldades em conter o riso. Acaso e aleatoriedade, um carro em alta velocidade e lá se vai a vida da menina. Resultado: a infante, agora decrépita, arrasta consigo a família em marcha de lesma que ora por sal.

Bicicleta nova, ainda protegida da queda pelas rodinhas. Papai correndo atrás, segura no selim, concede assim segurança e auto confiança, ingredientes necessários às primeiras pedaladas de qualquer garotinha. Ela consegue, todos conseguem, desde que preencham os requisitos. Ela não sorri, é desnecessário. O vento, ainda terno, lhe acaricia, um toque, agora passado, que custa não doer. Tudo se repete na roda da fortuna.

Há um mês nos divertimos pela tarde, ao menos aquele de nós que ainda consegue. Já refleti sobre o que fazemos, não sou insensível, mas veja bem, não há razão para arrependimentos, uma vez que  não consigo desenhar sorrisos em sóis alheios. Na primeira vez que a toquei ela chorou; calada. Eu não sinto falta de sua fala, lhe disse isso. A lágrima fez família. Mais de uma vez, quando sua mãe a deixava aqui em casa, ela chorou. É felicidade, eu dizia. Ela gosta muito de você, respondia a mãe apressada, e atrasada, novamente. Ríamos, sem alegria qualquer. Enfim sós, eu e Maria, matava vontades que há muito cresciam em mim. Em flor, o que é regado desabrocha. Eu a vejo verdadeiramente, e ela é mesmo linda. Traço geograficamente em seu corpo a imagem que a habita, aquém das imperfeições pelo destino talhadas.

Prazer na dor, a despeito da dor.  Ela não chora mais. Por dentro da carne ela vê, refletida em meus olhos, sua beleza ideal. Será? Sim, claro. Sua imagem, que com tanto esmero venho desenhando. Há cumplicidade entre nós. Nos amamos. Ela não precisa dizer. Ela não precisa se mover. Ela não precisa agir. Ela existe, e eu faço o suficiente por nós dois.

Ela quer voar, permanecer no percurso, cada vez mais alto, do balanço. Todo o corpo se impunha em dar velocidade à brincadeira. Seus cabelos dançam ao toque do vento, que frio, lhe seca o suor da testa. Ela sorri, é desnecessário. Memória, refúgio que não concede fuga. As tardes que ela não gostaria de lembrar, são as impossíveis de esquecer. A roda continuamente roda, seu movimento certeiro matou um futuro para adubar outro. Um carro, um atropelamento, uma tetraplégica, um destino dentro de um acaso.

Lá está ela, na cadeira de rodas em frente à sua casa, seu cabelo baila ao vento. Quanto de sua infância ela é capaz de lembrar? Será que ela se lembra dos tempos em que o vento era mais feliz? Tudo vai se apagar, mesmo as memórias? Creio. Às vezes penso que não deveríamos fazer o que fazemos. Mesmo eu sinto dores morais, mas, estranhamente, pareço senti-las em outro corpo, outro eu talvez. A certeza prática é que não sei cavalgar lágrimas alheias. Sigo, apenas, e é bom. A injustiça é divina.






Crédito: Imagem pertencente ao álbum, O Dobro de Cinco, de Lourenço Mutarelli.
Você pode conhecer o trabalho de Lourenço Mutarelli aqui.

Menina mentida_Parte III


Salve traça! 
Enfim, o fim. 
Decepcionem-se!



Menina mentida. 

III


“e não existe magia sem lágrimas. – concluiu a cigana.”

Presa no mármore da velhice, ansiava pelo toque de uma lágrima. A vida tardava em terminar, palavras ecoavam torturas longínquas: “Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.” Sim, dom mamãe! Você acha que deus esquece alguém? Eu tenho dom para puta. Essa barriga aqui é a prova disso, não é pai? Ainda está para nascer alguém com vocação para lixeiro, um belo dom não? Catar os restos, é isso. O senhor não precisa me colocar para fora de casa, eu me coloco. E porta batia, grito calava.  E porta batia, balançando memórias sem fechar lembranças. E porta batia, misturando dores e horrores no longo vestido de Madalena; sua filha.

A velha contemplava a felicidade da filha, o vestido verde escuro cobria as marcas de nascença adquiridas com a vida. Maria das Graças, a neta, com certeza era adotada, afinal o útero de Madalena havia sido comprometido ainda na infância, pobre garotinha; uma tristeza.

Sozinha, era o momento! Com as parcas forças que tinha na mão a velha começou a movimentar sua cadeira de rodas para trás. Ainda era cedo, e a praia se encontrava praticamente vazia. Pouco a pouco a velha se aproximava da avenida. O suor escorria do rosto queimado pela idade. Em suas mãos faltavam algumas unhas, sangue escorria de feridas recentes, ainda cicatrizando. Falta pouco, ela pensa.

- Não! – Grita Madalena, distante, ao ver o perigo que a mãe corre.

As energias da velha são consumidas rapidamente, há dor, excruciante, mas ela ignora, não vai parar. É agora, o fim sonhado, enfim. A chance de bater a cabeça no asfalto é luz; é salvação. E que venha o sangue, pensa a velha ao jogar todo o peso do corpo para trás. Deseja lançar sangue no asfalto. E vai: um ruído, o horizonte se move veloz, a praia, nuvens, o sol...ela fecha os olhos.

E o movimento estaca, ela arregala os olhos a tempo de admirar o caminho reverso, a praia, o mar, Madalena correndo em sua direção, desajeitada. O vento no vestido marca o corpo deformado da filha amada.

- Muito obrigado – Diz Madalena, ofegante, arqueada sobre os joelhos.

- Essa foi por pouco dona, nossa, pouco mesmo, ela ia cair com tudo no chão. – Responde o jovem do alto de sua beleza esculpida. Suas pernas realizam uma marcha estranha, corre sem sair do lugar, não quer parar o exercício.

- Não sei o que aconteceu, a trava de segurança da cadeira deve ter falhado.

- Só pode.  – diz o rapaz com um sorriso indolente. – Bem preciso continuar, a senhora precisa de mais alguma coisa?  - e o alongamento se inicia: força os dois braços para trás. Seus músculos peitorais bem definidos saltam aos olhos de Madalena.

- Não...Não...Muito obrigado, se houver algo que eu possa fazer para agradecê-lo.

- Foi nada não dona. – Diz o rapaz, correndo antes de ouvir a resposta. Ele não olha para trás.
Após um longo suspiro Madalena empurra a mãe para longe da avenida. Maria das Graças chega, correndo.

- Mamãe, o que aconteceu com a vovó?

- Nada não gracinha. Vamos para casa, hoje vovó terá que fazer um tratamento especial durante a noite. – Diz Madalena, quase sussurrando ao ouvido da velha.

Vê-se o sorriso.

Com os olhos fechados a velha revê o sorriso nunca esquecido, imagem adolescente. Na época o crepúsculo não a impedira de ver a escuridão, mas agora percebia, não vira a luz; apenas mudara de cela. A esperança é precária, vem em ondas, promete soluções, sentidos, certezas. O que pode o resto, o lixo? Toda a vida no lixão não se explica, falta meio à promessa do início, que não se cumpre em fim; uma mentira. A velha respira fundo, banha seus pulmões em decepção.Por que aquele sorriso se repete? Talvez tudo se repita, imensamente, feito ondas que não são mar.


Um pescoço cede, lança dois olhos fechados em direção ao chão. A velha cansada. 


Vê-se dor.

Mais um dia começou. 













Crédito: Imagem pertencente ao livro, A arte de produzir efeito sem causa, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

Menina mentida_Parte II


Menina mentida. 

II

                “Ouço o cair do tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair.”


O mar, a manhã, a brisa.
A praia vazia, a velha, a cadeira de rodas, o cheiro de urina, a nostalgia de futuro em broto seco.

Cabelos loiros encaracolados, olhos verdes, cheirosa, exalando juventude; uma bonequinha caminhando trôpega em direção à velha.  – Olha vovó, ganhei da mamãe. – Dizia a menina, enquanto colocava uma boneca no colo da idosa. A anciã, do alto de sua cadeira de rodas, lentamente moveu seu rosto, com os olhos fez um trajeto trabalhoso, da garota à boneca, da boneca à garota; dois objetos, porém um estava no pico da pilha de lixo.


O mover do braço da velha era surreal, seu corpo sofria, tal qual uma estátua, os infortúnios do movimento. Rangia dores e reumatismos que as cordas vocais não cantavam. A mão, pesada, tombou desajeitada sobre o rosto da boneca, o polegar exatamente sobre o olho esquerdo.

O presente da garota, maré inesperada, trouxe o passado em ondas, lançou conchas à praia. O peso de anos se esvaí no vagar marítimo. A velha imóvel, volta a peregrinar sobre pilhas de lixo, buscava a salvação: comida ou algo que se possa vender. De olhos fechados ela respira fundo o cheiro do lixão, se infla em juventude.

“Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.”, que no caso era a capacidade de ler, de compreender um autógrafo em uma camiseta da seleção, de saber o valor de uma primeira edição de Fernando Pessoa, de reconhecer uma carta de Mário de Andrade para Manuel Bandeira, coisas que brilhavam ouro para olhos interessados, brilho suficiente para pagar a vida, por meses. Chamavam-na Maria Ledura, pois era a única capaz de encontrar estas preciosidades abandonadas. Ao contrário da maioria das pessoas que trabalhavam ali no lixão, ela era estudada, faculdade mesmo. A boataria não parava por aí: matou a família; foi estuprada pelo pai e fugiu com a filha; freira que vivia em penitência; louca varrida.

Maria Ledura tinha como tesouro maior o silêncio. Mesmo no dia que encontrou a criança em meio ao lixo, ainda viva, sua boca nada soltou além de breve suspiro, frio, logo seguido pela sombra fugaz de um sorriso; só.

Os velhos diários de observação, ela os revê: a letra perfeita, desenhada lentamente sobre o papel, o total controle sobre os movimentos dos dedos, da mão, do corpo. Dia após dia as reflexões a respeito do lixo, da sociedade, da criança que crescia em seu barraco. Todo o passado é agora, de novo.

3, 250 Kg. 32 centímetros.

Alimentação: vitaminas e leite.  Continua a crescer. Chora menos. Vez ou outra retiro a bandagem de sua boca. A ferida do local onde se encontrava o mamilo esquerdo esta completamente cicatrizada.

Devido a uma falha na imobilização do corpo, ao tentar retirar a pálpebra comprometi seu olho. Precipitadamente, na excitação do momento, retirei completamente o olho esquerdo. Não sabendo como proceder costurei o orifício. Agora, arrependida, temo perder a criança. Passarei a noite procurando no guia de primeiros socorros algo que ajude a garantir a sobrevivência da menina.

Nunca vi algo tão belo quanto este olho. Segurá-lo gera excitação, sexual, mas ainda além. É agradável ao paladar, ao tato, mesmo seu odor é apaixonante.

Hoje, pela manhã, notei que os movimentos da criança estão lentos, temo sua morte. Preciso mantê-la viva. O descarte não é aceitável.

- Mãe! Mãe! Está assustando a Maria das Graças. – Disse a mulher puxando da mão da velha a boneca da criança. Sem perceber, a anciã pressionava com o polegar o olho esquerdo da boneca.

Vagamente a velha transitou com seu olhar entre a criança e a mulher, entre o passado e o presente. Contemplou os rostos desapontados de seus medos: a velhice não lhe trouxera respostas, não todas. Existira, e mesmo ao espelho diria isso; tivesse ainda voz.

- Vovó precisa de ar. Maria das Graças vamos passear na praia com ela?

- Tudo bem mamãe, mas posso levar minha filhinha?

- Pode sim, só tome cuidado, não vá perdê-la, como fez ontem. Desta vez não compro outra.

- Vou tomar muuuuiiiiittttooooo cuidado mamãe.  – Disse a menina, já correndo pela praia, bem a frente de sua mãe e  de sua vó, ambas ainda na calçada.

Olhando com seu único olho nos olhos da anciã a mãe da menina sorriu. Sua boca enformava o sorriso tal qual cicatriz – Gostaria de molhar os pés nas ondas mamãe? Pena que a senhora não consiga caminhar, se seus tendões ainda fossem bons né? Mas tudo bem, podemos conversar, deixa que eu falo por nós duas, ainda tenho língua.

E assim elas percorriam a orla, vez ou outra enfeitando o tédio, Madalena falava com a velha, porém sem desviar a atenção da filha, Maria das Graças, correndo pela praia. Caminhava empurrando a cadeira de rodas da velha, sem deixar de ofertar um bom dia sorrido a todos com que cruzava. A manhã florescia em tons díspares, algo como, por falta de outra palavra, magia, pairava no ar.

Vê-se silêncio. 



















Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Desgraçados, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui. 

Menina mentida_Parte I


Salve traça!
Começo a publicar esta semana um conto em três partes. Na real, acho que deveria ser lido de uma sentada, como diria Poe, no entanto quem conseguiria? É longo.
Caso não entenda nada ao término, tenha ESPERANÇA, quem sabe na semana seguinte venha a compreensão.

PS: Comecei a publicar esta semana o material antigo do Mutarelli, continuarei a fazer isso com periodicidade semanal, ao menos este é o plano. Se não viu ainda, pode ver aqui.  




Menina mentida. 


I
“Ela vende velas acesas
Falta fé na palavra
na carne.”

Um dia você ainda vai ser alguém, deus te deu inteligência, um dom.

Encolher de ombros.

Dom, inteligência, talento, e após 16 calendários eu carregava na barriga o sepulcro de todas as esperanças que tinham por mim, eu não os salvaria, mas enfim, nunca realmente quis. Não diria estava feliz, seria exagero, mas ao menos os sonhos de príncipe encantado eram passado, enterrados, sem redoma de vidro, beleza eterna e tal: não erro duas vezes.

Posso não ser religiosa, mas tenho apego por catar aleatoriedades que vem a minha praia. Junto-as com prazer, nelas escuto destinos. Bobeira? Sim, mas não me poupo das risadas a mim destinadas, faz parte. E então chego ao ponto do ônibus, fim de tarde, trânsito epilético. Cansada, vagava os olhos à caça de conchinhas, foi quando a vi. Ela não jogou o primeiro saco de lixo em minha vida, esta culpa não lhe pertence, porém esta era a primeira vez que eu admirava o precário do existir; perplexa.


Velha, seca, cabelos loiros e castanhos, privilégio de tinturas baratas e mal feitas. Calça jeans suja, blusinha preta, decote esqueleto. Estava quase de costas para mim, do outro lado da rua. Anotava algo na mão. Seu rosto indiciava uma parede logo à frente. Curiosa, acompanhei. Um anúncio decorava a parede do terreno baldio: “trago a pessoa amada em uma semana.” Uma, duas, três vezes, fiz o trajeto que ligava o olhar da velha ao anúncio, não havia dúvida.

Intrigada, encarava deliberadamente a velha, que logo percebeu. Um par, para meu espanto, de dois belos olhos castanhos me fixou. Sua pele lembrava as secas anunciadas em cadeia nacional. Seus lábios estavam tingidos em vermelho sexo. Trazia no rosto um sorriso sem dentes, uma felicidade em vácuo. Estávamos ligadas, não conseguia desviar minha atenção daquele rosto vazio. Demorou para que eu entendesse que ela não ria, mas sim mostrava-me o futuro. Esta foi a primeira vez que vi a escuridão.

Naquela época julguei a velha em termos de crendice popular e esperanças tolas. Tomei-a por alguém que saltara de simpatia em simpatia, de trabalho em trabalho, construindo prisões à prova de relacionamentos. Se a mandinga resolve, se traz o objeto amado, então o problema é ter dinheiro para pagá-la, oras, nada de diferente da realidade não sobrenatural. Embora minhas conclusões fossem levianas eu sabia que havia algo além de minha compreensão ali, algo que conectava a velha a mim, algum tipo de ligação que espelho algum refletiria. Vez ou outra me pego naquele fim de tarde, colada àqueles olhos que não piscavam.


E então o mundo piscou e momentaneamente tudo escureceu. Caí de joelhos, minha barriga queria explodir, entre minhas pernas algo escorria. A velha desaparecera, mas aqueles olhos eclipsaram portas sem caminhos, portos sem mar. A ultima coisa que vi, já no chão, foi um carrinho improvisado, transbordando papelão, se distanciando. Era ela?

Nunca mais a vi e todas as vezes que pisco, sempre a vejo. Nunca mais a reencontrei e todas as noites nos encontramos. Em momentos como esse, sob a luz do luar, em que me banho nos perfumes dos restos da sociedade, em que lavo meus pés nos dejetos do consumo, tomo consciência que no inconsciente caminho percorrido, me tornei aquilo persegui.  




Lixo.

Lixo, tal qual a velha, retrato do precário.

Vê-se um sorriso.




















Crédito: Imagens pertencentes ao álbum Eu te amo Lucimar, de Lourenço Mutarelli.
Você pode fazer o Download de Transubstanciação, de Lourenço Mutarelli, aqui.