Aglomerados de estranhas entranhas.


Salve traça!
Entre besteiras e asneiras, não há muito o que se falar, resta-me aglomerar, talvez, palavras demais.




Aglomerados de estranhas entranhas.

Meridiano de Sangue.

“Em qualquer acontecimento a história de todos não é a história de cada um nem tampouco a soma dessas histórias e ninguém aqui no final pode entender o motivo de sua presença pois ninguém tem como saber nem mesmo no que o acontecimento consiste.”

Intoxicante amor.

Sábado, 26 de janeiro. Em sua casa Ingrid se decide pela calcinha vermelha com detalhes em renda preta. É isso, será hoje. O ano tem sido perfeito até agora, tudo está dando certo; desde passar no vestibular até o lance com Peter. Será hoje! Sim. Depois da festa vamos para a casa de Peter, seus pais estão viajando. Se você não fizer ele vai buscar com outra. Mas será que dói muito mesmo? Que linda que ficou esta calcinha em você, preparada para matar heim. 

De costas, Ingrid admira no espelho a visão daquilo que seu namorado tanto anseia. Foda-se, diz olhando para o pequeno frasco com lubrificante; de morango. Eu o amo, farei o que ele quiser. Mas não custa nada tomar umas doses a mais de vodka, não? Risadas. Ê amiga, responde Julia, você está com fogo hoje!

Cicatrizes.

“Entre mortos e feridos, entre gritos e gemidos,
(a mentira e a verdade, a solidão e a cidade)
Entre um copo e outro da mesma bebida
Entre tantos corpos com a mesma ferida.”

Prenhe de esperança.

Sylvia, de joelhos ao lado da cama, ora. Não consegue dormir. Precisa passar. Fazer faculdade, o sonho de sua mãe, de seu falecido pai, talvez o seu. Precisa!

Não consigo expressar teu poder ó meu pai, o quanto é misericordioso. Só me resta esperar o milagre e as benção de Deus na minha vida, porque o que o Senhor promete e cumpre. É só descansar e tomar posse da vitória, tenho fé no Senhor. Sei que segunda feira terei a vaga. Obrigada Jesus por me amar tanto assim, mesmo eu sendo tão pequena diante da sua grandeza...

Voyeur.

Na casa ao lado, Oliver, entediado zapeia pelos 150 canais da TV a cabo.
Nickelodeon, ESPN, Sexo, corrida, luta de boxe, um policial correndo, zap. Um olhar: um leão agachado contempla a manada; o alimento. Preparado, o mais apto, analisa os movimentos da grande massa de animais que lhe cabem. Busca o fraco, o menos capaz. A língua, quase humana, molha o lábio. O leão respira fundo e parte, feito um tiro. Seu corpo se movimenta sem dificuldades, movimentos certeiros, lapidados por milênios. Seu corpo se destaca frente ao vermelho crepuscular, uma sombra em movimento, a morte que vem feito um disparo. A manada dispara. A adrenalina os desperta do prazer do pasto. Salve-se quem puder? Eles não pensam, correm. O cérebro responde rápido ao instinto mais básico, sobrevivência. Oliver está atento. Interessante ver a morte na segurança de um sofá velho, não? A manada de gnus, algo como um boi magro, em desespero, tromba entre si, atrapalham-se, pisoteiam-se: sobreviver. O leão vence, não há surpresa nisso. É o fim para mais um gnu, mais um dia natural. Ninguém chora, ninguém se vangloria. 

A câmera filma tudo, com detalhes: o golpe do leão, sua mordida, o sangue que escorre.  A mente de Oliver divaga na madrugada, imagina-se filmando o leão, porém em suas mãos traz uma arma. Olhos cerrados, ele espera o leão se distrair em seu banquete. Tal qual o cinegrafista focando a caçada, Oliver está lá, caçando. Ele dispara. É o fim.


27 de janeiro, dia internacional das vítimas do Holocausto.

 “Vários soldados da época de Hittler e muitos dos mortos podem ter vindo reencarnar aqui no Brasil, no Rio Grande do Sul, para resgatarem seus débitos espirituais. PROVAVELMENTE (sem comprovação nenhuma, neste momento) os jovens que desencarnaram hoje no acidente podem ter feito parte do comando de Hittler, e os envolvidos no caso como “culpados” (alguns seguranças, dono da boate...) podem ter sido mortos dentro dos campos de extermínios nazistas. Ou seja, a Lei da Ação de Reação pode ter sido aplicada neste caso.”

 Dinâmica. 

“A terceira lei de Newton afirma que a interação entre dois corpos quaisquer A e B é representada por forças mútuas: uma força que o corpo A exerce sobre o corpo B e uma força que o corpo B exerce sobre o corpo A. Estas forças têm mesmo módulo, mesma direção, mas sentidos contrários. É usual dizer que as forças relacionadas pela terceira lei de Newton formam um par ação-reação.

Por outro lado, é importante que fique bem claro o seguinte. A interação entre dois corpos origina duas forças de mesma natureza.  As forças atuam em corpos diferentes e, por isso, elas não se cancelam mutuamente. As forças são simultâneas: uma não vem antes e nem depois da outra.” 

Espetáculo.


O circo chegou. Veio de madrugada, não acordou ninguém, mas pela manhã todos sentiam no ar sua presença. Não chegou em caravana, não montou lona, mas fará o show. Foi chegando aos poucos, van por van, animal por animal. Uma vez maquiados os palhaços, enfim, fez-se a luz: o maior espetáculo da terra, agora ao seu alcance. Assista também! 

As entranhas expostas do destino: útil inutilidade.

Luto: Faça você também a sua parte.  

“O momento é de solidariedade, ajuda e oração. Uma tragédia em Santa Maria, num incêndio no salão de festa, vitimou 245 pessoas e muitos se encontram hospitalizados. A maioria são jovens universitários. É a maior tragédia já acontecida no Rio Grande do Sul. A Igreja reza pelos familiares para que tenham força, fé e coragem em Jesus Cristo. Cremos na ressurreição, sinal de esperança para os que morreram e para familiares. Ore você também.”

Segunda feira, 28 de janeiro.

Esperançosa Sylvia economiza uns trocados no almoço para pagar um tempinho na lan. Preciso ter passado. Senta-se no computador, faz o nome do pai e uma breve prece. Aperta com força as pálpebras, fecha-se brevemente em sua escuridão. Você precisa passar, você vai passar, eu tenho fé. Entre promessas e esperanças ela entra no site, mal consegue respirar. As informações estão disponíveis, lê. Sem pensar, passa de clique em clique, página por página.

Chocada, relê. Finge não entender as letras: não obteve nota suficiente. Respira fundo, abaixa a cabeça, odeia por alguns segundos o teclado, o mouse, sua mão, a si e a toda sua burrice. Respira fundo e abandona o local em meio a tropeços e lágrimas represadas.

Naquela mesma noite, após muita oração, Sylvia colocou sua cabeça no lugar. Plantou fé e colheu esperança. Esta ainda é apenas a segunda chamada, ainda tenho chances. Pessoas ainda podem desistir!

Na terceira chamada Sylvia foi convocada para matrícula. Ocorreram muitas desistências imprevistas no ano de 2013 em Santa Maria, RS. Sylvia passou, com a ajuda de deus. Ela merece.








A insustentável nobreza de ter II.



Salve traça!
Enfim, após dois meses sem postar nada, um pouco de bits amarelados. Razões? Talvez seja porque não tive saco de escrever sobre o Natal durante o Natal; retorno agora. Como o conto é em 4 partes, vou acelerar e tentar postar o mais rápido possível. Veremos. Aproveitem, pois o ar está carregado da poeira de meses sem movimentação! 





A insustentável nobreza de ter. 





Parte II - Na fábrica



Júlio seguia o senhor engravatado pelas ruas da fábrica. Além daqueles dois homens, não havia pessoas lá. Milhões de máquinas trabalhavam produzindo incessantemente. O quê? Não era possível reconhecer, o processo era rápido demais. Pequenos componentes eram soldados, encaixados, prensados. Era possível sentir a magia naquele local, o mágico funcionamento do progresso técnico, a máquina e seus truques incompreensíveis. O galpão era enorme, no céu, pois era muito alto para ser um teto, cabos e canos de várias cores se cruzavam em estradas. Energia, combustível? Impossível saber. Fato estranho para Julio era que ali sua perna, antes purulenta, estava boa: não doía ou fedia. Ele só percebeu isso quando começaram a subir uma escada. Ao longe, no alto da escada, atrás de um vidro, via-se a silhueta de um homem grande, gordo. Sua posição era ameaçadora, de poder. Este era o chefe, com certeza.

Para onde estamos indo?

Providenciar seu presente, só precisamos cuidar de uma pequena burocracia.

Você é mesmo Papai-noel?

Ora Júlio, não me faça rir. Como pode perguntar uma coisa dessas e nem ficar vermelho?

Calada, a dupla continuou a subir as escadas. Com a altura se tornou possível olhar o complexo industrial de uma nova vista, porém quanto mais se subia menos nítidas as máquinas ficavam. Grandes braços mecânicos movimentavam-se em linhas elevadas, giravam livremente movimentando componentes mil. Estranhamente não havia fumaça, ou mesmo qualquer cheiro que indicasse um ambiente fabril. O passado voltava à mente de Júlio no compasso da sinfonia concreta. Antes de ver sua vida em queda livre, ele fora feito gerente de uma montadora multinacional, em outras palavras, conhecia, como poucos, o ambiente fabril, e isso o assustava, pois naquele lugar sentia-se descobrindo a América, tudo era exótico, feito de outro tipo de matéria, no entanto, fantasiando-se de comum. Como se "algo mais" dissimulasse o fato de não ser uma fábrica, feito tesão, fingindo-se amor em busca de uma gozada adequadamente satisfatória. Metáforas à parte, ele seguiu, com um aperto no alto da garganta.

Enfim, de frente com a sala no topo da fábrica eles pararam. O senhor, impecável em seu terno, após abrir a porta, apontou servilmente o caminho para Júlio. – Por favor – Diziam sua mão e seu rosto, ligeiramente inclinados para esquerda, mas, evidentemente Júlio hesitava. Respirou fundo; disfarçou nada.  

A sala era simples, branco sobre branco, higienicamente hospitalar. Uma mesa de escritório, silêncio, duas cadeiras, um velho enfeitando o canto, figura de porte, olhos voltados para a imensa fábrica.

Vamos, senta.  – Disse o velho com uma voz estranhamente fina, de maneira alguma condizente com seu físico, enorme.

Júlio, segurando o riso, senta-se. Arruma o cabelo, afaga a barba, encara a ponta de seus tênis velhos. Com o pé direito ritma o tempo que se estende em silêncio, total. Toda aquela ausência de ruído o faz pensar não estar mais na fábrica. No entanto, as máquinas visíveis pela janela onde se encontra o velho desmentem seus sentidos.

O velho senta-se: enorme, pesado, sólido. Seus cabelos e barbas são de um branco amarelado, estragado. Restos, provavelmente de comida, povoam sua barba. Seu rosto lembra a aparência estereotipada de papai-noel, porém algo não se encaixa. Sobras, restos e faltas, mas ainda, trajando a pele de "papai-noel de sempre". Veste uma calça social preta, uma camisa branca e um suspensório para manter a calça sobre a barriga. De uma gaveta, abaixo da mesa, retira uma garrafa e um copo. Abre, cheira, cala. Seus olhos se fecham, seu peito se espuma, um sorriso rola em seu rosto. Vagarosamente, dois dedos do líquido marrom claro são lançados no copo. Ele guarda a garrafa e ,com o copo em mãos, diz:

Você nunca vai beber isso.

Uma vez mais Júlio segura o riso. A voz do velho é muito fina, de criança mesmo. Como pode alguém tão grande ter essa voz? De maneira a não sorrir, acaba fechando os olhos e abaixando a cabeça. Respirar fundo também é importante. Tem de se controlar, é impróprio rir da cara dos outros, aprendeu isso junto com a lição de respeitar os mais velhos, na mesma época em que descobrira que papai-noel não existe.

Se eu descrevesse o gosto desta bebida você enlouqueceria de desejo. Mas pode sossegar, não farei isso... Tenho juízo. Ei, olhe para mim quando falo com você! Está com algum problema?

Não senhor...não senhor...

Muito bem, você pediu outra chance, certo?

Você é papai-noel? E aquele outro senhor?

Relações públicas. Prefiro que ele faça o primeiro contato, tem lábia, saca? Aquele maldito poderia te fazer meter uma arma na garganta e puxar o gatilho, e, se ele quisesse, você faria sorrindo de agradecimento. Mas, se pensarmos em termos básicos, ele passa uma imagem melhor que a minha, mais aceitável. Sabe como é, toda essa coisa de gordura em excesso, sem falar no minha relação com a bebida. Essa geração politicamente correta é uma merda gigante. Tenho saco não. Fico aqui no controle, que é o que faço de melhor. Sem falar que não temos tantos clientes quanto antigamente. Não, não! Sem nostalgia, é verdade. Good old times. Mas é isso, não dá para arriscar perder um cliente só porque estou de ressaca. Então ele cuida de todo estes procedimentos de primeiro contato.

Júlio somente olhava para papai-noel, tudo parecia surreal demais para se aceitar sem titubear. Mas, sem dúvida, o mais perturbador era a voz. Era como se uma criança chata, que fala demais, ficasse puxando papo no meio do velório de sua própria mãe. Não dá...

Porra, você é mudo? Que caralho viu! Quase nunca vem ninguém aqui, e quando aparece alguém, é um retardado que não fala. Puta que o pariu, haja saco viu. – Disse o velho entornado o copo de bebida em um só gole. – Olha, negócio é o seguinte, você pediu outra chance, pois bem. Só preciso que faça algo para mim. É tipo um teste para eu ver se você não vai ferrar com sua vida de novo. Vou te levar no setor de bombons, lá trabalhamos voltados para a nova classe média. O povinho avarento que não tem um puto para comprar algo melhor, e fica dando caixas de bombom no natal. Enfim, você irá provar os bombons que produzimos. Quero que você me diga qual dos bombons da nossa linha é o melhor, o mais gostoso, aquele que para você é o ideal.  Avalie tudo, e quando digo tudo, é desde a embalagem até o cheiro do seu peido depois que digerir o chocolate. E por que isso? Você me pergunta com essa cara de trouxa que não está entendendo nada. Simples, sua nova vida será tão boa quanto o bombom. Nossos engenheiros tem um algoritmo complexo que relaciona e converte as mais variadas características do bombom em variáveis para sua “nova vida”. Assim, a cor da embalagem, pode ter relação direta com o local onde será sua casa. A consistência do bombom pode estar relacionada com sua relação amorosa com sua nova mulher, ou mesmo com seus filhos. Obviamente não entendo desta conversão, muitos detalhes técnicos. Eu sou o chefe, só aprovo e faço com que funcione. Entendeu?

Muita informação e pouco tempo, como assim relacionar bombons com sua nova vida? Júlio somente balançou a cabeça, em um gesto muito mais de consentimento do que de compreensão.

Então me diz? Você está com cara de que não entendeu porra nenhuma.

Júlio engoliu o ar que lhe faltava. Pensou fundo e soltou, feito gemido. - Eu escolho um bombom e, quanto melhor ele for, melhor será a vida que o senhor me dará.

Isso porra! Basicamente. Mas ó, você tem que provar e já tomar a decisão. Você provará cada bombom uma única vez, não tem volta não, então fica esperto. Quando você decidir você pega e fala para meu assistente: é esse que eu quero. Daí ele vai rodar o algoritmo de conversão e você vai acordar em sua nova vida, nova chance, novo eu, novo tudo...O que você sempre quis, todo bacanão e tal. Bom para caralho, né não?

Júlio permanecia em silêncio, o que mais havia para fazer? Não é possível nadar contra a correnteza na queda da cachoeira, frase de vovô. Restava seguir o percurso, mergulhar. Escolher um bombom? Simples, se é isso que ele quer.

Beleza então, já perdi tempo demais. Tenho que voltar ao trabalho. Noue, – gritou papai-noel – acompanha o Julinho aqui para o setor de bombons, ele vai fazer o teste.

E assim Júlio saiu, acompanhado de Noue, o velho encarregado das relações públicas de papai-noel. Eles se dirigiam para o setor de bombons.