Escrevendo Sofia - I

Salve traça,

A ideia é:
Todas as segundas: um conto / texto / alimento para traça, novo.
Todas as quintas: um trecho de Escrevendo Sofia.
Hoje começo com Escrevendo Sofia. A história é maluca, mas sua loucura vai se revelando aos poucos. Não vou adiantá-la. ;)
Não gosto muito do texto, mas, eu acho, que ele vai melhorando aos poucos.








Escrevendo Sofia

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa,, se alguém escrever,
A verdadeira história da humanidade.
Álvaro de Campos



I

Aquecer a glacial vida com um pouco de morte. O cemitério, o velório público, tudo higienicamente abandonado, distante; diria, coletivo, impessoal. Não! A noite já deitava suas carícias nas partes íntimas, era hora de visitar um velório privativo, casa de luxo, bairro de outro mundo, rostos conhecidos em sofrimento disfarçado. Do bolso de seu casaco o homem em preto retira uma das notas de cinqüenta reais e entrega para o dono do bar. Despede-se da suçuarana dormindo em seu galho, belo quadro, e parte ouvindo o homem a gritar-lhe pelo troco. Suçuarana dormindo sossegada ao som ambiente de Country music americana? Por que não? Por que não chamá-la onça? Suçuarana. A vida; amontoado de escolhas estranhas.
Pelas ruas ambulâncias choram em desespero enquanto o homem de casaco preto caminha, cabisbaixo, no verão tropical. À brisa quente de um bueiro ocasional ele ajeita seu cachecol. Caminha certeiro, seus dentes abraçam-se incessantemente, calafrio, febre. A vida; uma seqüência interrupta de delírios travestidos de realidade.
Memórias; talvez dez anos atrás, ele se revê recebendo a dádiva: um sobrenome, Sr Montuani. Os Montuani, família enriquecida pelos anos regados pela escravidão; muito dinheiro e status.  E agora a vergonha; o casamento de sua filha mais nova, Tatiane, com um desconhecido. Um garoto de merda, de uma família de merda. Sim,  embora ande com as costas arcadas o homem em preto já fora jovem.
A memória: Lucas, deitado no quarto dos fundos de uma mansão, ao seu lado a jovem Montuani, uma mulher qualquer, sua futura esposa. Em sua mente, o fim do túnel, visto do ponto de vista da imensa garganta de seu pai, deformada por ter engolido todas as misérias da vida simples. Casar-se com uma mulher rica, não era essa a única salvação para uma pessoa como ele? Toda a luz no fim do túnel não seria capaz de iluminar as trevas que se seguiram.
A vida: Lucas Montuani, em preto, caminhando rápido em direção a um velório.

II

O mundo vai acabar, disse o velho. Assim tem sido, respondeu o homem de casaco preto. Um trago, um gole, os dois se olham; o silêncio é a manifestação mais palpável de Deus. Sobre eles uma ponte une o centro da cidade ao Jardim das Nações, bairro nobre, rico e silencioso. Grandes casas abandonadas aos cuidados de vigias invejosos e empregadas sonhadoras (como adjetivar a alienação completa?).
Teria a paciência de escutar um velho contar uma velha história? Um trago, um gole, Deus e uma buzina. Sr Montuani decide escutar o velho. 
Tudo aconteceu em uma esquecida cidade na qual o Sol brilhava abaixo do chão, a antiga Lástima, sim, haviam escolhido mal o nome, mas isso não mudava o fato de naquelas terras haver muito ouro. Sabe, morreram lá muitas pessoas, e veja bem que naqueles tempos ainda não era comum morrer sem ter vivido. Lá, naquela cidade que nem todo o brilho do ouro era capaz de iluminar, permaneci por vários anos no encalço da felicidade, ou melhor, do ouro.
Não ria.
    Todos os dias, ao voltar do cansativo trabalho nas minas, eu passava em frente ao cemitério; era o caminho para minha casa, e lá sempre via um velho sentado na sombra de um poste. Embora ainda carregasse muitos dentes na boca, já tinha o costume de me atentar às pessoas ao meu redor. Aquele senhor me intrigava; deverás. Sentava-se sempre na sombra do poste, de maneira que o imaginava como um relógio solar em forma de velhice. Certo dia, quando os céus caíam sem trégua,  e meus passos eram firmes e rápidos, rumo a minha casa, vi-o na chuva, cabisbaixo. Não suportei – Senhor, qual o sentido de tomar esta chuva? – Não se engane meu rapaz, não havia bondade em minhas palavras, curiosidade era o que me movia.
   Vagarosamente ele tirou um relógio de seu bolso, uma antiguidade, conferiu as horas com um sorriso nos olhos e então se levantou. Com suas duas mãos enrugadas ele jogou seus cabelos para trás, jovialidade inesperada. Olhou-me e sorriu. De seu paletó tirou uma pequena garrafa, tomou um gole e ofereceu-a a mim. Chuva, frio e curiosidade; sim, obviamente aceitei. E assim ele me perguntou, entre um gole e um sorriso – Qual o sentido?
    Por um breve segundo nossos olhos se tocaram; profundamente.Sabe meu jovem, hoje sou velho, feio e meu o odor afasta até mesmo os pássaros, porém houve um tempo onde tive muitas mulheres em meus braços. Apesar disso, digo-lhe do fundo do que ainda me resta de coração, aquele momento em que encarei aquele velho foi a maior experiência de intimidade que já tive em minha vida. Aquele matreiro desvendara minha alma, e,  após uma piscadela, rimos. Rimos como africanos a trocar negros por cachaça; rimos como um aniversariante que celebra seu centésimo aniversário; rimos, e na sombra de nossos sorrisos estavam os restos de todo o resto. Qual o sentido? Sim! Há piada maior?
      Caminhamos até a praia, cientes da cruz que trazíamos atrelada à nossa felicidade. Como grandes mandíbulas famintas as ondas abocanhavam a praia deserta. Vento, chuva e fim de tarde, paisagem afrodisíaca para um suicídio. Arranje um pedaço de madeira. – disse o velho - Fácil, tomei-o da árvore ao meu lado. Um grito logo fez–me perceber a falha. Tem de ser galho seco, morto há tempos. – Certo, alguns minutos mais e entreguei-lhe um pedaço de madeira encontrado próximo ao lixo. Qual o sentido, o jovem quer saber? – Esbravejou o velho para o vento, seus passos lentos o levavam para as ondas. Por instantes pensei o pior, porém ele parou próximo o suficiente para ter os pés açoitados pelo mar. Mãos firmes, um desenho na areia. Um círculo.
   Um círculo a mão livre, na areia, efêmero como o carinho das ondas na praia. O tempo se acalmara e a Lua já se estendia no céu. Uma vez mais o velho desenhou, um círculo, e uma vez mais, as ondas tomaram seu desenho. Aquilo me parecia loucura, mas de um tipo estranho, algo como uma sabedoria somente acessível por vias tortuosas.

   Tome, não preciso mais deste relógio; agora é seu. – disse-me aquele velho, envolto na  escuridão de uma noite há muito passada. E é exatamente isso o que lhe digo, jovem. Leve com você agora este relógio. 
Estas foram as últimas palavras ditas pelo velho ao homem de casaco preto. Que rindo, prosseguiu seu caminho, ignorando a oferta do velho.

Um círculo desenhado com um galho morto na areia da praia, continuamente sendo refeito, só para ser apagado pelas ondas? Esse é o sentido? Que piada. E ainda queria compartilhar comigo sua maldição com ares de trabalho feito? De sabedoria? Velho maldito. – E pensando, longe, o homem em preto ia. 

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